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Ultrassom e o amaciamento de carnes

O ultrassom de alta frequência tem seu uso na ciência e tecnologia de carnes baseado na variação de sua velocidade a diferentes temperaturas, em porções magras e gordurosas, podendo ser usado para medir a quantidade de gordura, umidade e proteína de animais vivos e de cortes. Desde a década de 50, o ultrassom é utilizado para inferir o conteúdo de gordura em bovinos vivos. Atualmente, utiliza-se também para identificar datas para abate e predizer a qualidade e palatabilidade das carcaças bovinas, suínas e ovinas, além de ser utilizado em técnicas de análise para determinar a composição físico-química de peixes e frangos (DOLATOWSKI et al., 2007; AWAD et al., 2012).

Contudo, a maioria dos estudos na área de carnes utiliza o ultrassom de baixa frequência, estudando seu efeito na textura. A maciez é um dos principais parâmetros de qualidade da carne e um dos principais problemas da indústria cárnea. A impressão geral da maciez para o paladar inclui a textura e envolve três aspectos. Primeiramente, a facilidade de penetração da carne pelos dentes; em segundo lugar, a facilidade com a qual a carne se fragmenta; e, em terceiro lugar, a quantidade de resíduo que permanece após a mastigação. Inúmeros fatores pré e pós-abate influenciam na maciez, como a espécie, raça, idade, músculo, quantidade de gordura intra e intermuscular, velocidade de queda de pH, exposição a baixas temperaturas (encurtamento pelo frio), condições de cocção, entre outros (LAWRIE, 2005). A maciez é determinada por dois principais componentes do músculo esquelético: o tecido contrátil ou fração miofibrilar (actina, miosina, tropomiosina) e o tecido conjuntivo (colágeno, elastina, reticulina), sendo o primeiro facilmente manipulado pelas técnicas artificiais de amaciamento pós-abate. O tecido conjuntivo é mais difícil de manipular para aumentar a maciez (JAYASOORIYA et al., 2004).

Em condições naturais, a maciez é obtida pela maturação, que ocorre após o rigor mortis. Os processos metabólicos da conversão do músculo em carne encerram-se após a conclusão do rigor mortis e a carne pronta para o consumo é obtida após certo tempo de armazenamento refrigerado, que pode durar desde dias até semanas. Durante a maturação, enzimas proteolíticas, principalmente as catepsinas e calpaínas, atuam degradando actina, miosina e proteínas da faixa Z. As catepsinas são capazes de hidrolisar as proteínas miofibrilares, inclusive os segmentos peptídicos que resultam dessa hidrólise. Entretanto, as calpaínas são as enzimas que exercem maior efeito sobre o amaciamento, requerendo para sua ativação doses de cálcio na ordem de micromoles (calpaína I) ou milimoles (calpaína II), sendo a primeira a responsável pela maior parte do efeito na textura da carne (PRÄNDL et al., 1994; ORDÓÑEZ, 2005).

O efeito do ultrassom sobre a textura da carne é basicamente devido aos efeitos de cavitação, principalmente cavitação transiente (CHANDRAPALA et al., 2012). A natureza destrutiva da cavitação e a vibração da onda ultrassônica levam ao enfraquecimento da estrutura muscular, com a ruptura das estruturas do colágeno e das miofibrilas (GOT et al., 1999; STADNIK & DOLATOWSKI, 2011). Além disso, a cavitação também causa danos à estrutura de organelas celulares, com a liberação de catepsinas dos lisossomos e de cálcio do retículo sarcoplasmático, o qual ativará o sistema calpaína, acelerando a proteólise (CHANDRAPALA et al., 2012). A atividade enzimática de proteases também poderá ser acelerada pelo aumento de temperatura que ocorre durante a exposição ao ultrassom (DICKENS et al., 1991; CHANDRAPALA et al., 2012). Outra consequência desse aquecimento é a desnaturação proteica, que poderia vir a contribuir com o amaciamento do músculo (JAYASOORIYA et al., 2007).

Para obter efeitos sobre a textura, parâmetros acústicos como frequência, intensidade, duração da exposição e temperatura devem ser considerados, além das características do músculo analisado. Desde os primeiros estudos, busca-se inferir o efeito isolado desses fatores e qual a melhor combinação para o efeito desejado.

A frequência de ultrassom é um dos aspectos mais importantes para o tratamento de carnes. GOT et al. (1999) utilizaram alta frequência (2,6 MHz) com intensidade de 10 W cm-2 por 30 segundos para amaciar músculos bovinos na fase de pré e pós rigor mortis, sem obter melhora nos parâmetros de maciez considerados. Frequências na ordem de MHz não são capazes de provocar efeitos de cavitação, o que justificou o resultado negativo naquele estudo (PIYASENA et al., 2003). A cavitação ocorre entre 20 e 100 kHz, sendo essa faixa de frequência utilizada para estudos posteriores, que mostraram efetividade na maciez, especialmente entre 20 e 45 kHz (JAYASOORIYA et al., 2007; STADNIK et al., 2008; STADNIK & DOLATOWSKI, 2011).

A intensidade com que o ultrassom atinge o músculo também deve ser considerada. O trabalho de ZAYATAS et al. (1971) é um dos primeiros estudos sobre o uso de ultrassom em matriz cárnea com a finalidade de melhorar a maciez, utilizando baixa intensidade (2 W cm-2) em frequência de 20 kHz. Os autores não verificaram nenhum efeito significativo, sugerindo que intensidades maiores são necessárias. Estudos seguintes que avaliaram baixas intensidades (<10 W cm-2) também não observaram resultados efetivos. POHLMAN et al. (1997a), ao testarem frequência de 20 kHz e 1,55 W cm-2 de intensidade por 8, 16 ou 24 minutos de exposição à sonda de ultrassom, não observaram efeito sobre a textura nos músculos Semitendinosus e Biceps femoris em bovinos, avaliada através da medida da força de cisalhamento. Em um segundo estudo, POHLMAN et al. (1997b) utilizaram a mesma frequência (20 kHz), porém com maior intensidade (22 W cm-2) por 0, 5 ou 10 minutos em músculo bovino Pectoralis, sem melhorar a maciez e as características sensoriais e de cozimento. O efeito observado foi atribuído à grande quantidade de colágeno do músculo analisado, que pode ter mascarado o efeito do ultrassom. LYNG et al. (1997) estudaram aplicação de ultrassom com baixas intensidades (30-47 kHz e 0,29-0,62 W cm-2 de frequência e intensidades, respectivamente) em banho sobre os músculos Longissimus, Semitendinosus e Biceps femoris, sem obter resultado efetivo sobre amaciamento, solubilidade de colágeno e proteólise miofibrilar. Assim como baixas intensidades não apresentam resultados positivos, a exposição a intensidades maiores (62 W cm-2 com 20 kHz de frequência) não foi eficaz, quando aplicada por 30 segundos em músculos bovinos e de cordeiro (LYNG et al., 1998 a,b). Os autores atribuíram o resultado à alta intensidade e ao baixo tempo de exposição utilizados.

O tempo de exposição ao ultrassom também exerce efeito importante quando se busca amaciamento da carne. JAYASOORIYA et al. (2007) avaliaram o efeito do tempo de exposição (0, 30, 60, 120 e 240 segundos) de músculos bovinos Semitendinosus e Longissimus a uma sonda com frequência de 24 kHz e 12 W cm-2 de intensidade, analisando diversos parâmetros como pH, cor, mudanças nas perdas de peso após exposição ao ultrassom e após cozimento, além de avaliar as mudanças de textura provocadas pela sonicação, concluindo que são necessários tempos de exposição ao ultrassom acima de 60 segundos para se ter efeito na tenderização dos músculos. Os autores também relataram que, à medida que o tempo de exposição aumentou, a firmeza da carne reduziu, sem prejudicar os demais parâmetros de qualidade avaliados.

STADNIK et al. (2008) utilizaram banho de ultrassom para acelerar o processo de maturação de músculo bovino Semimembranosus à frequência de 45 kHz, na intensidade de 2 W cm-2 e exposição por 120 segundos. As amostras sonicadas apresentaram mudanças post mortem mais avançadas que o controle não sonicado, com maior capacidade de retenção de água no músculo e maior degradação de proteínas, sendo que os músculos expostos ao ultrassom ficaram mais macios do que os músculos do controle. Em trabalho posterior, foram usados os mesmos parâmetros acústicos (45 kHz, 2 W cm-2, 120 s) e foi constatado que, 48 e 72 horas após o abate, o valor da força de cisalhamento usado para estimar a maciez foi significativamente menor na amostra exposta ao ultrassom. Após 96 horas, os valores obtidos para amostra sonicada e controle foram similares, ou seja, o ultrassom exerceu efeito sobre a maciez apenas nos três primeiros dias após o abate (STADNIK & DOLATOWSKI, 2011). No trabalho de JAYASOORIYA et al. (2007), os autores observaram efeito do ultrassom até o quinto dia post-mortem, sendo que, após 8,5 dias, o efeito foi semelhante ao controle não sonicado. Sendo assim, sugere-se que o ultrassom apenas adianta o processo de maturação natural, reduzindo o tempo necessário para que a carne fique macia.

Além da maciez, outros parâmetros importantes para a qualidade da carne devem ser ponderados quando o músculo é exposto ao ultrassom. Os valores da queda do pH post-mortem foram avaliados por alguns autores e os resultados ainda são contraditórios. STADNIK & DOLATOWSKI (2011) não observaram efeito significativo do ultrassom sobre esse parâmetro. JAYASOORIYA et al. (2007) relatam aumento de pH conforme o tempo de exposição ao ultrassom variou de 0 a 240 segundos, atribuindo isso ao fato da cavitação causar danos à célula com liberação de íons no citosol e mudanças na conformação de proteínas que ocultariam grupos acídicos (GOT et al., 1999). A queda de pH é importante em função de estar diretamente ligada à ativação das enzimas proteolíticas calpaínas e catepsinas. O pH ótimo para ação das catepsinas é moderadamente ácido, enquanto das calpaínas é neutro. Desse modo, o aumento de pH aumenta a atividade das calpaínas, as quais têm papel principal na maturação. STADNIK et al. (2008) observaram efeito significativo do ultrassom sobre o pH apenas após 48h post-mortem, quando a amostra sonicada apresentou valor de pH significativamente mais alto que o controle, mas semelhante nos tempos de análise de 24, 72 ou 96h post-mortem.

As perdas de peso após exposição ao ultrassom e ao cozimento foram medidas por POHLMAN et al. (1997a,b) e por JAYASOORIYA et al. (2007) e nenhum efeito do ultrassom foi observado, quando comparado ao controle não sonicado. STADNIK et al. (2008) avaliaram a capacidade de retenção de água em amostras controle e sonicadas em banho a 45 kHz, 2 W cm-2 por 120 segundos, e não observaram diferença após 24 ou 48 horas post-mortem. Esse é um aspecto positivo, uma vez que o conteúdo de água contribui para as características de suculência da carne.

A cor também é um atributo bastante considerado pelo consumidor no momento da compra. Os parâmetros de cor L* (luminosidade), a* (verde-vermelho) e b* (amarelo-azul) não foram afetados pelo tratamento de ultrasssom nos estudos de JAYASOORIYA et al. (2007) e STADNIK & DOLATOWSKI et al. (2011). CHANG et al. (2012) não observaram efeito do ultrassom sobre L* e a*, mas o parâmetro b* foi significativamente menor que o controle, quando exposto por 30 segundos. Esse efeito foi atribuído à alta frequência utilizada (40 kHz), especialmente quando comparada à frequência testada por JAYASOORIYA et al. (2007) (24 kHz). No primeiro estudo de POHLMAN et al. (1997a), ao usar banho de ultrassom com parâmetros acústicos de 20 kHz, 1,55 W cm-2 e exposição por 8, 16 ou 24 minutos em músculo bovino Semitendinosus e Biceps femoris, não foi percebido efeito do ultrassom sobre os parâmetros L*, a* ou b*. Porém, ao manter a frequência de 20 kHz e aumentar a intensidade para 22 W cm-2 com tempos de 0, 5 ou 10 minutos em músculo Pectoralis, os autores relatam maior luminosidade (maior L*), menor intensidade da coloração vermelha (menor a*) e maior intensidade de tonalidade amarela (maior b*), quando o músculo foi exposto ao ultrassom, embora não se tenha percebido diferença entre os tempos de 5 e de 10 minutos, ou seja, o ultrassom afetou os parâmetros de cor, independentemente do tempo de exposição utilizado (POHLMAN et al., 1997b).

O efeito do ultrassom sobre a flora benéfica, deteriorante e patogênica em carnes ainda é pouco explorado, embora já se saiba que o ultrassom não é efetivo quando utilizado como único tratamento para reduzir a carga microbiana. POHLMAN et al. (1997a) avaliaram o potencial germicida do ultrassom em músculos bovinos, sem observar diferença estatisticamente significante quando as amostras sonicadas foram comparadas ao controle por 30 dias de armazenamento. Apenas no dia zero foi verificado leve efeito inibitório do ultrassom sobre o número de colônias, mas a diferença entre a amostra sonicada e o controle desapareceu após cinco dias. Desse modo, o ultrassom exerceu apenas impacto imediato sobre o crescimento de microrganismos, sem garantir o efeito ao longo do armazenamento.

Contudo, é difícil comparar dados, em função da variação das características específicas de equipamentos e das peculiaridades intrínsecas de cada músculo estudado. Diversos fatores podem influenciar nos resultados, desde as condições acústicas até as particularidades de cada músculo, já que alguns efeitos do uso do ultrassom na qualidade da carne ainda são contraditórios.

 

CONCLUSÃO

O ultrassom é uma tecnologia de processamento nova na área de alimentos e com potencial de ser utilizado na ciência e tecnologia de carnes para auxiliar na obtenção de carnes mais macias, tão desejadas pelo consumidor. Alguns parâmetros acústicos que influenciam na sua efetividade, bem como mecanismos de ação, já foram esclarecidos; contudo, alguns efeitos na qualidade da carne ainda são contraditórios. Sendo assim, o uso do ultrassom na área de carnes carece de mais estudos e deve ser melhor explorado, abrindo espaço para desenvolvimento de novas tecnologias acessórias e o estabelecimento de parâmetros que possam padronizar sua aplicação e tornar seu efeito reprodutível.

 

REFERÊNCIAS

AHNSTRÖM, M.L. et al. Effects of pelvic suspension of beef carcasses on quality and physical traits of five muscles from four gender-age groups.Meat Science, v.90, n.3, p.528-535. Disponível em: <http://www.sciencedirect.com/science?

Rogerio Alves

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2023